Ao Jovem Werther da Estação de Ramos

Julieta Al
3 min readJun 24, 2018

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Encontrei ontem num saquinho no fundo do armário um bilhete em um guardanapo assinado por Werther, que reclamava da minha falta de atenção e gritava que iria se matar lá nos quartinhos dos fundos, mas que já voltava de banho tomado. Há horas estou me perguntando por que ele (por que você) não foi parar na minha caixinha de lembranças permanente, de tão permanente que é a memória sua. Essa caixinha que me acompanha desde que comecei minha peregrinação por uma casa minha só minha com armários suficientes para tantas tralhas. Fora da caixinha, perdidas, sentavam-se no armário as palavras do jovem Werther que ia se matar por atenção, mas que after-life voltava com muito amor para me dar, provavelmente semiesquecidas qual romance falido que foi parar no fundo da gaveta do escritor frustrado. Palavras que você escreveu e nem deve lembrar que existem ainda, palavras suas que são só minhas agora. Palavras que, por algum motivo, andavam sem pertencimento.

E aí eu penso: quantas palavras minhas devem andar perdidas por aí? Essa parte de quem eu sou que fica com os outros, que nunca foi e nunca será minha, configura uma existência independente que talvez ainda vague no fundo do armário de algum amor passado. Uma existência que só se presta ao olhar do outro ou ao esquecimento.

Dizem que os universos paralelos estão a zilhares de éons de distância, que são do domínio exclusivo da ficção científica. Não, não: estão logo ali, quem sabe ainda no quartinho dos fundos daquela rua da sua casa, perto da estação de Ramos, ou quem sabe foram parar na inevitável fogueira que engole todo resquício de quem um dia fomos. E com olhar ou com esquecimento, ainda é, porque um dia chegou a ser. Ou quase foi, o que é a mesma coisa.

Ainda penso em como teria sido a minha vida se não tivesse te deixado aquele dia na Adega Portugalia, surpreso com o tão repentino fim que eu mesma impus a nós dois. Independentemente de ‘e ses’ ou de ‘ou nãos’, ainda hoje vou até aquele perigoso lugar do ‘será que você ainda pensa em mim?’, mas logo vejo que isso não é do interesse de mais ninguém, nem meu, nem seu. A minha sua existência e a sua minha existência apenas são quando a gente lembra de lembrar. Então, já que não importa, lanço minha resposta ao ar, sem fim, sem destino, esperando que ainda viva um tempo fora de mim.

Ao jovem Werther da estação de Ramos: não garanto que as suas palavras me acompanhem no meu próximo destino. A mala é muito pequena e alguns grilhões já me pesam demais. O mais provável é que fiquem mais alguns anos sem serem lidas, no fundo de um armário emprestado, mas ocupando lugar oficial na minha caixinha de lembranças. Então não tenha pressa e tome seu banho com calma. Deixe para morrer na volta.

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