Rx

Julieta Al
2 min readSep 23, 2021

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Procurando uma folha para fazer uma lista de compras, achei um pequeno apontamento com a letra dela no caderno onde venho fazendo as minhas anotações astrológicas. Pude ver, no desenho das cursivas, o cartão do convite de aniversário dos meus seis anos feito à mão da abejita José Miel con brillantina sobre papel canson (como queria ter guardado esse convite). O R, que aprendi magistralmente a falsificar para assinar as notificações da escola que ela não tinha saco de ver. O R que conheci bem a vida toda e que até hoje idolatro (perdoem o exagero: a lua está em Touro e passa pela minha casa 3, então o que resta é escrever). O R desenhado. La Ro.

Estou de frente à concatenação de palavras na tira arrancada de papel, que, sem nenhuma importância aparente, formam a frase que tenho diante de mim: “Reunión de coordinación CYTED”. Não quer dizer nada, mas la R e o seu desenho, o desenho da frase, assumem a dimensão de uma existência inteira. (Às vezes sinto a minha vida como o museu de la R, sem conseguir sair dele. Um eterno filme do Buñuel, um dia da marmota. Um museu com, agora, mais uma tirinha de papel. O que faço com ela? É a seleção das memórias o que me mata: como pode um anel ser mais importante que uma tira de papel escrita?)

Pela R, revivi, em sonho, o momento da última volta da ampulheta dela e me preocupei novamente com as burocracias, plano de saúde e hospital. Mas a R, ela me esperava sem perceber a areia se esvaindo pelo buraquinho, preocupada pela espera e com esperança de que a estadia ali fosse curta dessa vez. Acho que o papelzinho escrito me levou de volta ao momento em que percebi que era hora e precisei fingir que não era nada, que era como uma tirinha de papel com uma frase qualquer, sem importância, nem para a posteridade.

Assim retorno a esse momento, porque preciso retornar. Escrevo, porque, existindo a memória para ser esquecida, preciso escrever.

Discordo da máxima que insta ao esquecimento como forma de avanço. Mas não sei o que colocar no seu lugar. Não vivo no passado, mas tampouco no presente, parece. E o futuro não é nada. Vivo na contemplação de uma tira de papel, no desenho de uma letra, na imagem da areia da ampulheta caindo, na lua passando, numa ficção que existe para apenas ser lembrada por mim mesma. Meus vestígios, quem será que vai ler?

Será que um dia posso aspirar a ser uma letra numa tirinha de papel?

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